quarta-feira, 22 de junho de 2011

Cisne negro , uma fantasia de carnaval , por Ruth de Aquino

Época
RUTH DE AQUINO
é colunista de ÉPOCA

Se tivéssemos de adivinhar qual fantasia faria mais sucesso nos blocos de rua neste ano, apostaríamos no cisne branco ou no cisne negro? Nenhum dos dois, provavelmente. O filme que deu o Oscar a Natalie Portman remete muito mais ao terror e à dor que à alegria e à leveza do Carnaval. Mas muitas moças – e rapazes – se travestiram de cisne. O preferido não foi o bonzinho. E sim o cisne maquiavélico, lascivo, misterioso. Isso quer dizer alguma coisa. O cisne negro foi escolhido por ser mais sedutor.
Acho que só eu ainda não tinha visto o filme de Darren Aronofsky que dividiu a crítica entre os que amaram, odiaram e não entenderam. Não estava preparada para o impacto que Cisne negro me causou. Dancei balé clássico sete anos. Os dedos dos pés ficavam feridos com a sapatilha de ponta, por mais esparadrapos, plumas e truques a que eu apelasse. A música, os ensaios, a coreografia, tudo era paixão e valia a pena. Mas o Cisne negro não me sequestrou por aí.
O som hipnotizante de Tchaikovsky. A fotografia, os efeitos especiais, os closes e o uso excepcional de dublês. As exigências do coreógrafo. Os labirintos mentais de Nina (Natalie). Tudo me pareceu verossímil por retratar a dualidade de todos nós e a busca da plenitude. Por que se preocupar com o que é ou não fantasia? O filme é genial por ser um turbilhão, belo, forte e sensual. O diretor não separa o simbólico do real. E não tem a menor importância. No fim, eu via os créditos sem enxergar, com a respiração ofegante. Não pelo sangue ou pela pergunta estéril – morreu ou não morreu? Mas pela força transformadora do roteiro, pela sombra fictícia das asas negras no palco.
Conversei com nossa prima ballerina Ana Botafogo, que assistiu ao filme duas vezes: “O diretor usou o universo do balé como apoio por ter disciplina rigorosa, egos e emoção à flor da pele. Só receio que o filme leve pais e crianças a achar que os exageros são reais, as drogas, a bissexualidade. Como em toda profissão desafiadora, no balé há cisnes brancos, há cisnes negros e há os que surtam”. O desempenho de Natalie como bailarina foi elogiado por Ana: “Ela fez eximiamente as tomadas da cintura para cima. No conjunto de braços, colo e pescoço, conseguiu uma harmonia impossível numa bailarina não profissional, mesmo tendo estudado dois anos para o papel. A trucagem com os dublês, para o trabalho de pés e piruetas, é muito caprichada. Cheguei a me confundir na primeira vez em que vi o filme”.
O filme “Cisne negro” incomoda, não é para todos. Tem a ver com delírio, transgressão e liberdade
Só depois de assistir a Cisne negro, li sobre ele. Valorizou-se demais a rivalidade entre mãe e filha – comum em quase todo divã. Cada um vê o que lhe toca mais: a competição, a automutilação, a ânsia de perfeição. Há o time dos implicantes com Natalie. Acham que “a expressão dela é sempre a mesma no filme”. Ela estava arrebatadora no papel de uma jovem confusa, sozinha, virgem e imatura que quer ser perfeita a todo custo. E surta.
Cisne negro incomoda. É um thriller psicológico sadomasoquista, um gênero que não é para todos. Não dá para levar a sério quem diz: “Não gostei do filme porque é exagerado”. É como não gostar de uma ópera “por ser dramática”. Ou não gostar de A single man (título patético no Brasil: Direito de amar), de Tom Ford, porque só percebeu no cinema, tarde demais, que o protagonista era homossexual e o roteiro era sobre gays. Veludo azul e Cidade dos sonhos, ambos de David Lynch, são ruins por serem confusos, doentios? Esses filmes são alucinações. Não se exige compromisso com a lógica ou o comedimento. Quem deseja mergulhar num cristalino Lago dos Cisnes deve evitar a turbulência de Cisne negro, porque se sentirá ludibriado.
A frase que mais me marcou foi a do coreógrafo para a bailarina: “Perfeição não é só sobre controle; é também saber abandonar-se” . Técnica irrepreensível sem emoção deixa a desejar em qualquer profissão. É preciso deixar rolar, entregar-se, ser flexível e até imperfeito. Rir de si mesmo e de tudo. O cisne branco, com sua rigidez, parecia incapaz de relaxar e se divertir. O cisne negro era passional, imprevisível, com a centelha da loucura, e por isso tão sedutor. Os foliões escolheram a fantasia certa. Carnaval é uma festa pagã. Tem a ver com delírio, transgressão, máscaras e liberdade.
Cisne negro, uma fantasia de Carnaval
Ruth de Aquino
Época
RUTH DE AQUINO
é colunista de ÉPOCA
raquino@edglobo.com.br
Se tivéssemos de adivinhar qual fantasia faria mais sucesso nos blocos de rua neste ano, apostaríamos no cisne branco ou no cisne negro? Nenhum dos dois, provavelmente. O filme que deu o Oscar a Natalie Portman remete muito mais ao terror e à dor que à alegria e à leveza do Carnaval. Mas muitas moças – e rapazes – se travestiram de cisne. O preferido não foi o bonzinho. E sim o cisne maquiavélico, lascivo, misterioso. Isso quer dizer alguma coisa. O cisne negro foi escolhido por ser mais sedutor.
Acho que só eu ainda não tinha visto o filme de Darren Aronofsky que dividiu a crítica entre os que amaram, odiaram e não entenderam. Não estava preparada para o impacto que Cisne negro me causou. Dancei balé clássico sete anos. Os dedos dos pés ficavam feridos com a sapatilha de ponta, por mais esparadrapos, plumas e truques a que eu apelasse. A música, os ensaios, a coreografia, tudo era paixão e valia a pena. Mas o Cisne negro não me sequestrou por aí.
O som hipnotizante de Tchaikovsky. A fotografia, os efeitos especiais, os closes e o uso excepcional de dublês. As exigências do coreógrafo. Os labirintos mentais de Nina (Natalie). Tudo me pareceu verossímil por retratar a dualidade de todos nós e a busca da plenitude. Por que se preocupar com o que é ou não fantasia? O filme é genial por ser um turbilhão, belo, forte e sensual. O diretor não separa o simbólico do real. E não tem a menor importância. No fim, eu via os créditos sem enxergar, com a respiração ofegante. Não pelo sangue ou pela pergunta estéril – morreu ou não morreu? Mas pela força transformadora do roteiro, pela sombra fictícia das asas negras no palco.
Conversei com nossa prima ballerina Ana Botafogo, que assistiu ao filme duas vezes: “O diretor usou o universo do balé como apoio por ter disciplina rigorosa, egos e emoção à flor da pele. Só receio que o filme leve pais e crianças a achar que os exageros são reais, as drogas, a bissexualidade. Como em toda profissão desafiadora, no balé há cisnes brancos, há cisnes negros e há os que surtam”. O desempenho de Natalie como bailarina foi elogiado por Ana: “Ela fez eximiamente as tomadas da cintura para cima. No conjunto de braços, colo e pescoço, conseguiu uma harmonia impossível numa bailarina não profissional, mesmo tendo estudado dois anos para o papel. A trucagem com os dublês, para o trabalho de pés e piruetas, é muito caprichada. Cheguei a me confundir na primeira vez em que vi o filme”.
O filme “Cisne negro” incomoda, não é para todos. Tem a ver com delírio, transgressão e liberdade
Só depois de assistir a Cisne negro, li sobre ele. Valorizou-se demais a rivalidade entre mãe e filha – comum em quase todo divã. Cada um vê o que lhe toca mais: a competição, a automutilação, a ânsia de perfeição. Há o time dos implicantes com Natalie. Acham que “a expressão dela é sempre a mesma no filme”. Ela estava arrebatadora no papel de uma jovem confusa, sozinha, virgem e imatura que quer ser perfeita a todo custo. E surta.
Cisne negro incomoda. É um thriller psicológico sadomasoquista, um gênero que não é para todos. Não dá para levar a sério quem diz: “Não gostei do filme porque é exagerado”. É como não gostar de uma ópera “por ser dramática”. Ou não gostar de A single man (título patético no Brasil: Direito de amar), de Tom Ford, porque só percebeu no cinema, tarde demais, que o protagonista era homossexual e o roteiro era sobre gays. Veludo azul e Cidade dos sonhos, ambos de David Lynch, são ruins por serem confusos, doentios? Esses filmes são alucinações. Não se exige compromisso com a lógica ou o comedimento. Quem deseja mergulhar num cristalino Lago dos Cisnes deve evitar a turbulência de Cisne negro, porque se sentirá ludibriado.
A frase que mais me marcou foi a do coreógrafo para a bailarina: “Perfeição não é só sobre controle; é também saber abandonar-se” . Técnica irrepreensível sem emoção deixa a desejar em qualquer profissão. É preciso deixar rolar, entregar-se, ser flexível e até imperfeito. Rir de si mesmo e de tudo. O cisne branco, com sua rigidez, parecia incapaz de relaxar e se divertir. O cisne negro era passional, imprevisível, com a centelha da loucura, e por isso tão sedutor. Os foliões escolheram a fantasia certa. Carnaval é uma festa pagã. Tem a ver com delírio, transgressão, máscaras e liberdade.

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